sábado, 27 de fevereiro de 2010

O RÁDIO QUE QUEREMOS OUVIR

(Publicado no Guia da Semana)

Alguma coisa acontece com a nossa música no rádio. E não é apenas quando cruzamos a Ipiranga com a Avenida São João. Seja qual for a esquina, a maioria das estações de FM denunciam a falta de qualidade no repertório.

Tem gente preferindo escutar A Hora do Brasil a ouvir a música do Brasil (tudo bem, exagerei, mas não vai demorar para isso acontecer). Salvo algumas exceções, música boa é raridade na programação. O que fazer? Desligue o rádio e ligue o computador.

No mundo virtual a coisa é bem diferente. Em meio a um sistema complexo de códigos binários, existe um eficiente sistema democrático. Você não é escravo da programação dos outros. Pelo contrário, torna-se proprietário da escolha do que deseja ouvir.

E se fuçar, acha coisa boa.

Tem a Débora Gurgel tocando Só Danço Samba com o Nelson Ayres. Sabe quando você vai ouvir isso no rádio?

Puxe uma cadeira.

Tem a Silvia Goes despejando musicalidade em O Filho Que Quero Ter, do Toquinho e Vinícius. Por falar em Vinícius, tem o Calderoni, jovem compositor que merece um lugar nos seus ouvidos. (Nas rádios também, mas fazer o quê?) Tem outro Vinícius, chamado Dorim, soprando virtuosidade no sax, Chico Pinheiro anunciando uma nova fase da MPB, Ulisses Rocha com seu violão preciso, Thiago Espírito Santo e por aí vai.

A Internet devolveu o "sorriso no rosto de nossos ouvidos". E você não precisa saber o nome de todas as feras para capturá-las. O MySpace de um deles já é suficiente para chegar até os outros. Músico bom é tão raro que acaba virando uma panelinha. E que som faz essa panela.

Longe do autor aqui difamar um veículo tão importante como o rádio. Muito menos generalizar a falta de qualidade. Existem sim, algumas estações se esforçando para colocar música boa no ar. Mas são poucas. E a gente fica com uma sede imensa de som.

Quando vamos ouvir Notícias da Praça Central em alguma estação da FM? Ou o Hermeto tocando chaleira enquanto eu estiver no trânsito? A que horas o Morelenbaum vai dar uma entrevista sobre as suas influências musicais? Quando alguém vai dizer que o compositor de Duas Contas foi o Garoto e que ele fazia muito americano ir ao teatro só para ver seus arranjos nos shows da Carmen Miranda? E o Francis Hime, por onde ele anda cantando Embarcações?

Vamos lá, gente. Quero ver todo mundo cruzar os dedos, torcendo para que "som bom" seja uma rima possível nas rádios.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

HAMILTON E YAMANDU

(Publicado no Guia da Semana)

A noite tinha tudo para acabar no sofá, ao som da vinheta do Globo Repórter. Mas não acabou. O convite do meu tio mudou o rumo sonoro daquela sexta-feira. E lá fui eu em direção ao Auditório do Ibirapuera degustar música boa: Yamandu Costa e Hamilton de Holanda.

No céu, a lua fazia uma participação especial. Foi a primeira a entrar no palco, pegando a plateia de surpresa numa cidade com espetáculos naturais tão prejudicados pela poluição.

A lua cantava a capela.

Do lado de fora do teatro, uma multidão de espectadores andava a passos ansiosos, aguardando os primeiros acordes. Alguns exibiam seus celulares de última geração. Outros faziam carinhos automáticos nas namoradas. Tinha muita gente, o que me assustou um pouco, no sentido otimista da palavra, porque música instrumental não costuma tirar as pessoas de casa. Sempre me deparei com fileiras vazias nos shows do Egberto Gismonti ou do Wagner Tiso, por exemplo. Algo estava mudando ali. Não haveria fileiras vazias.

Aquela sexta-feira instrumental ia me deixando sem palavras.

A última campainha anunciava escandalosamente o início do show. No palco, Yamandu com seu violão sete cordas e Hamilton de Holanda com seu bandolim. E como parece conversar com a gente o dedilhado daqueles dois. É um diálogo de instrumentos, onde notas são letras e fraseados melódicos são textos com sentido, coesão e neologismos.

A música instrumental fala com a gente. Vai dizendo o que você quer ouvir. Na primeira peça, o bandolim do Hamilton me contava sobre as cores. Comentou da alegria do amarelo, do efeito mágico do roxo, falou sobre como colorir as pessoas tristes. Já o violão do Yamandu gritava comigo. Discutia sobre a qualidade da nossa música, reclamava da falta de critério do ser humano.

Ao meu lado, um inglês de cabelos experientes acompanhava de boca aberta o espectáculo. Antes do show, ele havia me contado sobre as viagens dele pela Europa, sobre as praias da Itália, sobre como existe lugar bonito no mundo, do lado de cima do globo terrestre.

Hamilton de Holanda anunciou uma canção que ele compôs quando morava sozinho na França. O músico começou a acariciar o bandolim. E o inglês da plateia me olhou com um ar de surpresa e euforia, balançou a cabeça num sinal positivo e me disse em silêncio: como é bom estar no Brasil.

O show ia chegando ao fim. Hamilton e Yamandu voltaram duas vezes para atender aos pedidos de bis e depois sumiram na cortina misteriosa do teatro. Foi um show e tanto. Um show e tantos na plateia.

Não vou esquecer tão cedo aquela noite que venceu os filmes do Telecine, superou os bares da cidade, os shows de cantores consagrados, os lançamentos em 3D nas salas de cinemas, os barris de chope, os sofás confortáveis, as reuniões na casa dos amigos.

Yamandu e Hamilton lotaram o Auditório do Ibirauera. Vitória da música instrumental.