segunda-feira, 13 de setembro de 2010

COM INSPIRAÇÃO

(Publicado no Guia da Semana)

A música nasce da inspiração. A letra pode entrar na mente do artista a qualquer momento sem ser convidada. E a melodia também. Ulisses Rocha, grande violonista e compositor do nosso país, já viu muitas de suas peças nascerem na estrada, enquanto ia de São Paulo a Campinas. Ele imaginava as notas e, no final da viagem, passava para o papel tudo o que surgiu no asfalto.

Mas o que dizer sobre os dias de hoje? Os músicos continuam compondo por pura inspiração? Ou, no melhor estilo Idade Média, por encomenda?

Ligue o rádio. Você vai descobrir algo triste: 1% de inspiração e 99% de encomenda. As letras mecânicas e as rimas previsíveis não surpreendem nossos ouvidos. Elas são como o trânsito das seis da tarde: sem novidade, desgastantes. Quando alguém escreve uma música, pensando apenas em fazer sucesso, deixa de lado todo o sentimento disponível que mora em algum lugar por aí. E som órfão de inspiração frustra a plateia.

Peguemos Tom Jobim emprestado lá do céu como exemplo. Escolha aleatoriamente um dos CDs dele ou aperte o play do mp3 em alguma das canções do maestro soberano. Já nos primeiros acordes, você dá um sorriso. Porque Jobim nunca compôs só para fazer sucesso. Ele se sentava debaixo de uma árvore no Jardim Botânico e despejava emoções na partitura. A voz do maestro vivia trazendo recados do mundo da inspiração.

Quer ser famoso fazendo música? Comece pesquisando as fontes da sua inspiração. Quem é a pessoa que faz você ter vontade de pegar um instrumento, um papel, uma caneta e sair arriscando versos e notas? Invista em encontros com ela. Quais são os lugares capazes de arrancar um fundo suspiro da sua alma, seguido de um "adoro esse lugar"? Qual a hora do dia em que a rotina vai dormir e a sua mente convida o coração para pensar no lugar dela?

Música com inspiração nem sempre assume o primeiro lugar nas listas das mais tocadas. É o caso do som de George Vidal e de João Miguel Valencise. Entre no Myspace desses artistas e tome um banho de canções capazes de emocionar até o alemão mais frio de Berlim.

A música deve nascer lá de dentro do artista, chegar ao mundo com uma história para se contar. Senão, ela toca nas rádios, toca nas lojas de shoppings, toca nos elevadores, toca nos palcos, e não toca ninguém.

CENAS MUSICAIS

(Publicado no Guia da Semana)

Uma música tem mais que mil imagens. Desde Que o Samba é Samba vem visitar os meus ouvidos. A janela me traz pessoas andando tranquilamente para atravessar a rua. Um homem está sentado no meio da cidade, lendo o jornal. Mas o dia troca de faixa para Sorriso do Gordo, instrumental de Teco Cardoso e Lea Freire. Agora, os passos são ansiosos. A fila do shopping aumentou junto com a pressa. Os carros cantam pneus. Corre que não vai dar tempo de bater o cartão. Olha lá uma mulher atravessando no vermelho. O baterista dita o ritmo da cidade.

Woody Allen é uma prova da bela relação entre som e imagem. O cineasta assina a trilha de vários filmes, vai gravando com uma câmera na mão e um clarinete imaginário na cabeça. Temos uma Nova Iorque charmosa quando, ao fundo, um jazz faz cama para as falas neuróticas das personagens. Para cada banco nos parques do Brooklyn, há um maestro regendo a paisagem. No universo de Woody Allen, dá para se tocar Nova Iorque no rádio.

Não é fácil escolher a trilha de um filme. Passei por tal experiência recentemente. Uma árvore com Tom Jobim é muito mais verde que com Cazuza. Ao lado de um senhor sentado no sofá ao som do Cartola, está uma tristeza tranquila, lendo revista de fofoca. O mesmo senhor ao som de Chico Buarque é outra história. No sofá, ele se recupera da briga com a esposa, mulher descompensada. Acabou de se mandar para rua, levando um Neruda debaixo do braço.

O sol é uma nota aguda, chega a doer nos ouvidos. O mar é harmonia cadenciada, notas fáceis de se apreciarem. Aliás, o mar está cheio de pausas. A mulher que desceu do carro para brigar no cruzamento da Av. Brasil com a Rebouças vai soando ópera pela cidade. E o padeiro com a caneta atrás da orelha, sorrindo em dia de chuva, 1 X 0 do Pixinguinha. Toda personalidade é compositora de sua própria música.

Lembro-me do grande maestro Vitche, responsável por muitas trilhas de filmes. Num estúdio em Pinheiros, ele me mostrou uma folha cheia de linhas. Uma espécie de pauta musical. Naquelas páginas amareladas, o maestro ia escrevendo as notas ditadas pela imagem no monitor. O gol do Pelé estava em mi menor, mas o pulo já mudaria de tom: sol maior.

A música não apenas muda uma imagem. Ela também carrega em si mesma milhões de frames. É a imagem do som. Ou você não vê uma moça loira de biquíni fininho andando na praia toda vez que escuta Garota de Ipanema? Não há nada mais agradável que brincar de enxergar o som.

Dá próxima vez que apertar o play do rádio, repare nas imagens. Com quem você se encontra durante os polêmicos acordes do Egberto Gismonti? Qual a cor da música do Frank Sinatra? Quantas pessoas moram na cidade onde a banda do Chico passou?

Música é mágica. A gente ouve enxergando de olhos fechados.

SALA BRASIL

(Publicado no Guia da Semana)

O assunto poderia ser o show de algum pop star e a introdução do texto seria uma tentativa de medir em palavras o tamanho da fila no Credicard Hall. Ou, quem sabe, o assunto trouxesse a notícia do lançamento do clipe daquela banda lota-estágios.

Dessa vez, as palavras foram visitar um tema diferente. Na verdade, uma sala: a Sala Brasil.

Não se trata de um programa de TV ou título de canção patriota. A Sala Brasil é um cantinho de música na esquina do interior de São Paulo. Ela mora dentro de uma escola de música. Lá, as paredes agradecem "por terem nascido com ouvido".

Vira e mexe, tem show na Sala Brasil. De passagem pela cidade, fui convidado a assistir a um deles. Cheguei como quem prepara as expectativas para algo menor, evitando o nascimento da frustração. Aprendi a lição: não confundam baixo número de habitantes com falta de qualidade musical. O show foi daqueles de morar para sempre na memória. Quem assina os arranjos é o maestro e dono da escola George Vidal. Com o passar dos acordes, fui descobrindo a existência da música fora do eixo Rio-São Paulo.

A Sala Brasil é a música pegando a estrada, mostrando que o país esconde tesouros por aí. O esquema é bem simples: você paga uns cinco ou dez reais para entrar e ainda pode comprar churrasco e bebida sem ter que ir até a padaria. Antes do show, a plateia (no interior todo mundo se conhece) aproveita para colocar o papo em dia, confirmar as fofocas, exercitar a fala. Mas quando a mão do maestro beija as teclas do piano, nada mais se ouve. Bauru é o silêncio. E as notas abraçam a cidade, espalhando poesia longe da Globo, bem distante das páginas dos jornais.

Na Sala Brasil, o dentista troca o motorzinho pelas baquetas. O advogado argumenta soprando um saxofone. Médico cura paciente usando apenas uma guitarra. Qualquer um pode produzir som, na Sala Brasil. Os arranjos do maestro levam o nível musical lá para cima. E os alunos, no palco, declamam o que aprenderam.

Assim foi o dia em que visitei a Sala Brasil. Saí de lá com um texto pronto na cabeça, as palavras gritando dentro da mente como se pedissem justiça. A Sala Brasil também merece um cantinho na mídia. Se tanto faz para as pautas dos jornais, para mim ela fez diferença. Salve a Sala Brasil. Salve George Vidal, o maestro. Salve a nossa música que mora lá no interior.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

ALÉM DO VIOLÃO

(Publicado no Guia da Semana)

Carioca na Certidão de Nascimento, paulista na conta de luz e de telefone. Ulisses Rocha é um dos grandes nomes da nossa música. Os acordes do seu violão vêm compondo a história instrumental brasileira. Ulisses coordena cursos nas escolas mais respeitadas do país. E grandes violonistas já passaram pelas suas mãos: Alessandro Penezzi, Euclides Marques, Chico Saraiva, Marcos Davi e por aí vai.

Entre no MySpace de Ulisses. Você vai ver que há shows agendados em vários países da Europa. O pessoal do hemisfério norte parece ter uma cultura musical superior à nossa. Exportamos a laranja, os gringos fazem suco e vendem de volta. No café da manhã, a mesa do brasileiro exibe embalagens importadas. Com a música é a mesma coisa. Dia desses, entrei na seção de jazz de uma loja de CDs (ainda existe gente que compra isso?). O Villa Lobos saía a preço de caviar. A explicação do atendente foi automática: "Ah, esse CD é importado. Vem do estrangeiro". O Villa virou Vylla.

Ulisses Rocha ainda é novo. Temos que consumir suas músicas, conferir seus malabares nas cordas do violão e comprar seus CDs antes que eles ganhem um selo de uma gravadora da Noruega. É preciso registrar informalmente a nacionalidade de Ulisses. Se ele ficar dando sopa, qualquer suíço vem e leva embora.

Difícil saber onde termina Ulisses e começa seu violão. As duas coisas se misturam em um emaranhado sonoro. A música Fim de Tarde nos convida para assistir ao pôr do sol na pedra de alguma praia. A melodia de Imigrante anda de um país a outro. Rua Harmonia leva nossos ouvidos para passear na Vila Madalena, em São Paulo. Infância faz o relógio andar de ré. Manhã é som com gosto de pão de queijo, café e leite. O violão de Ulisses é um dicionário de emoções.

Várias influências musicais dão cor ao som de Ulisses Rocha: rock, bossa nova, samba, pop e jazz. Aliás, ele criou um jazz brasileiro. Pegou o som do Pat Metheny e do Baden Powell, jogou dentro de um liquidificador e adicionou alguns ingredientes próprios. Nasceu assim a música dissonantemente precisa deste mestre das cordas.

Vamos afinar nossa cultura musical ouvindo Ulisses Rocha. O mundo inteiro lota as casas de shows para apreciar o balé de dedos desse grande - e nosso - violonista. Se você tem um amigo estrangeiro, apresente o som de Ulisses para ele. Antes que o contrário aconteça.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

NÃO DÁ

(Publicado no Guia da Semana)

A gente consegue viver sem carro. Um ponto de ônibus perto de casa ou uma bicicleta na garagem já resolvem. A gente consegue viver sem celular, sem e-mail e sem ir ao shopping. Também dá para viver sem televisão, sem saber que fim levou a mocinha da novela. O ser humano é forte, tira de letra a ausência de algumas coisas que ele mesmo criou.

Mas ainda está para chegar o dia em que a gente vai conseguir viver sem música. Não dá. Agora, por exemplo, um fone faz companhia aos meus ouvidos. Desligando o rádio, desligo também as possibilidades de combinar palavras. Desligo a mim mesmo.

Música é o nosso play.

Outro dia, a moça da academia se apressava em avisar aos alunos que não haveria aula de bike e de ioga. Motivo? O rádio estava quebrado. A falta de música não é nada saudável.

O trânsito pode ser caótico, pode ser aquático, com ruas e avenidas alagadas. Mesmo assim, lá estão os valentes motoristas em suas arcas 1.0 enfrentando a cidade. Mas basta o rádio do carro quebrar que eles correm para a oficina. Vale tudo, menos trânsito sem música.

Em visita a uma leiteria no interior de São Paulo, o agricultor me confessou: "as vacas daqui só dão leite quando o rádio tá ligado. Se não tem música, não tem leite." Sei que é difícil acreditar nisso, mas fui testemunha. Ele tirou o rádio da tomada, e a vaca, num gesto de protesto, entrou em greve.

O que seria do cinema sem música? "Não seria". A gente dependeria de gênios como Chaplin para contar uma história sem usar som. Nos filmes de Hitchcock, as facas não assustariam tanto. Woody Allen e George Gershwin nunca trabalhariam juntos.

Tudo bem que políticos corruptos não ganhariam a eleição com seus jingles irritantes, mas isso é apenas uma sardinha dentro de um oceano de vantagens.

Nada pessoal contra o silêncio, mas sem música não dá para viver.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

O RÁDIO QUE QUEREMOS OUVIR

(Publicado no Guia da Semana)

Alguma coisa acontece com a nossa música no rádio. E não é apenas quando cruzamos a Ipiranga com a Avenida São João. Seja qual for a esquina, a maioria das estações de FM denunciam a falta de qualidade no repertório.

Tem gente preferindo escutar A Hora do Brasil a ouvir a música do Brasil (tudo bem, exagerei, mas não vai demorar para isso acontecer). Salvo algumas exceções, música boa é raridade na programação. O que fazer? Desligue o rádio e ligue o computador.

No mundo virtual a coisa é bem diferente. Em meio a um sistema complexo de códigos binários, existe um eficiente sistema democrático. Você não é escravo da programação dos outros. Pelo contrário, torna-se proprietário da escolha do que deseja ouvir.

E se fuçar, acha coisa boa.

Tem a Débora Gurgel tocando Só Danço Samba com o Nelson Ayres. Sabe quando você vai ouvir isso no rádio?

Puxe uma cadeira.

Tem a Silvia Goes despejando musicalidade em O Filho Que Quero Ter, do Toquinho e Vinícius. Por falar em Vinícius, tem o Calderoni, jovem compositor que merece um lugar nos seus ouvidos. (Nas rádios também, mas fazer o quê?) Tem outro Vinícius, chamado Dorim, soprando virtuosidade no sax, Chico Pinheiro anunciando uma nova fase da MPB, Ulisses Rocha com seu violão preciso, Thiago Espírito Santo e por aí vai.

A Internet devolveu o "sorriso no rosto de nossos ouvidos". E você não precisa saber o nome de todas as feras para capturá-las. O MySpace de um deles já é suficiente para chegar até os outros. Músico bom é tão raro que acaba virando uma panelinha. E que som faz essa panela.

Longe do autor aqui difamar um veículo tão importante como o rádio. Muito menos generalizar a falta de qualidade. Existem sim, algumas estações se esforçando para colocar música boa no ar. Mas são poucas. E a gente fica com uma sede imensa de som.

Quando vamos ouvir Notícias da Praça Central em alguma estação da FM? Ou o Hermeto tocando chaleira enquanto eu estiver no trânsito? A que horas o Morelenbaum vai dar uma entrevista sobre as suas influências musicais? Quando alguém vai dizer que o compositor de Duas Contas foi o Garoto e que ele fazia muito americano ir ao teatro só para ver seus arranjos nos shows da Carmen Miranda? E o Francis Hime, por onde ele anda cantando Embarcações?

Vamos lá, gente. Quero ver todo mundo cruzar os dedos, torcendo para que "som bom" seja uma rima possível nas rádios.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

HAMILTON E YAMANDU

(Publicado no Guia da Semana)

A noite tinha tudo para acabar no sofá, ao som da vinheta do Globo Repórter. Mas não acabou. O convite do meu tio mudou o rumo sonoro daquela sexta-feira. E lá fui eu em direção ao Auditório do Ibirapuera degustar música boa: Yamandu Costa e Hamilton de Holanda.

No céu, a lua fazia uma participação especial. Foi a primeira a entrar no palco, pegando a plateia de surpresa numa cidade com espetáculos naturais tão prejudicados pela poluição.

A lua cantava a capela.

Do lado de fora do teatro, uma multidão de espectadores andava a passos ansiosos, aguardando os primeiros acordes. Alguns exibiam seus celulares de última geração. Outros faziam carinhos automáticos nas namoradas. Tinha muita gente, o que me assustou um pouco, no sentido otimista da palavra, porque música instrumental não costuma tirar as pessoas de casa. Sempre me deparei com fileiras vazias nos shows do Egberto Gismonti ou do Wagner Tiso, por exemplo. Algo estava mudando ali. Não haveria fileiras vazias.

Aquela sexta-feira instrumental ia me deixando sem palavras.

A última campainha anunciava escandalosamente o início do show. No palco, Yamandu com seu violão sete cordas e Hamilton de Holanda com seu bandolim. E como parece conversar com a gente o dedilhado daqueles dois. É um diálogo de instrumentos, onde notas são letras e fraseados melódicos são textos com sentido, coesão e neologismos.

A música instrumental fala com a gente. Vai dizendo o que você quer ouvir. Na primeira peça, o bandolim do Hamilton me contava sobre as cores. Comentou da alegria do amarelo, do efeito mágico do roxo, falou sobre como colorir as pessoas tristes. Já o violão do Yamandu gritava comigo. Discutia sobre a qualidade da nossa música, reclamava da falta de critério do ser humano.

Ao meu lado, um inglês de cabelos experientes acompanhava de boca aberta o espectáculo. Antes do show, ele havia me contado sobre as viagens dele pela Europa, sobre as praias da Itália, sobre como existe lugar bonito no mundo, do lado de cima do globo terrestre.

Hamilton de Holanda anunciou uma canção que ele compôs quando morava sozinho na França. O músico começou a acariciar o bandolim. E o inglês da plateia me olhou com um ar de surpresa e euforia, balançou a cabeça num sinal positivo e me disse em silêncio: como é bom estar no Brasil.

O show ia chegando ao fim. Hamilton e Yamandu voltaram duas vezes para atender aos pedidos de bis e depois sumiram na cortina misteriosa do teatro. Foi um show e tanto. Um show e tantos na plateia.

Não vou esquecer tão cedo aquela noite que venceu os filmes do Telecine, superou os bares da cidade, os shows de cantores consagrados, os lançamentos em 3D nas salas de cinemas, os barris de chope, os sofás confortáveis, as reuniões na casa dos amigos.

Yamandu e Hamilton lotaram o Auditório do Ibirauera. Vitória da música instrumental.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

MÚSICA DA ALMA

(Publicado no Guia da Semana)

Numa tarde normal, levaram Villa Lobos para conhecer um sambista na favela da mangueira. O maestro subiu o morro junto com suas expectativas, até alcançar um barracão. Um magro rapaz de óculos escuros fez sinal para entrarem na casa. Alguém pediu em voz alta: - Cartola, toca um sambinha seu aí para o maestro ouvir. Ele atendeu ao pedido. No final do samba, Villa Lobos deixaria um verso para a história. "Tá tudo errado, mas tá maravilhoso".

Até que ponto vários anos de estudo dão em samba? Nunca vi nenhuma emoção pedir o currículo do artista antes de agir sobre organismos e almas.

Dizem por aí que Vinicius de Morais sugeriu ao seu pupilo Toquinho não estudar muito, para manter a lógica intuitiva tão agradável de suas melodias. O poetinha queria preservar a ingenuidade do som. Queria notas sem diploma, acordes que nunca frequentaram a sala de aula.

A alma não está nem aí para o que é certo ou errado. Ela quer é sentir. Cartola fez Villa Lobos sentir. Os dedos no violão indicavam a falta de técnica. Mas o maestro foi traído pelo descuido de seus ouvidos. E num movimento natural, a música "torta" daquele rapaz da mangueira fazia mais sentido que qualquer sinfonia executada pela Filarmônica de Berlim.

Tudo bem que saber as regras de uma linguagem ajuda a desconstruí-la. O poeta Manoel de Barros só desafia a gramática, hoje, porque, ontem, devorou livros sobre a estrutura da língua. Talvez, entender a música e suas peculiaridades seja mais uma ferramenta para ajudar a intuição na busca pelo que emociona. Mas está longe de ser a única coisa de que um artista precisa.

Ninguém aqui é contra jovem fazer faculdade de música. Tendo coragem para comunicar à família, vá em frente. Conhecimento é sempre bem-vindo. Só que as lições sobre inventar sequências de notas que viram uma bicicleta descendo a montanha na cabeça da moça da primeira fileira não estão nos livros.

Quando um compositor desarmado de fórmulas musicais apanha um violão no canto do quarto, ele não enxerga cinco cordas. Enxerga som. E a intuição dele começa a brincar com as notas. Sentir o que combina. Ouvir o que agrada. Assim vai nascendo uma música saudável, descontaminada. Depois, ele pode até recorrer aos livros para lapidar a obra. Mas a essência nasceu lá de dentro, de um lugar sem regras, sem leis, onde dois mais dois são cinco e seis ao mesmo tempo.

Na hora de fazer música, vale acionar a intuição. Conversar com a inspiração. Música tem que emocionar. A melhor professora para dizer se uma partitura está certa ou errada é a nossa alma.

Noel tem toda razão. "Sambar é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio".

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O ARTISTA

(Publicado no Guia da Semana)

O artista precisa fugir. Ir lá naquela ponta bem distante que ninguém sabe qual é, porque não dá para ver. Ele tem que correr. E olhar para trás quando ouvir um assobio. Ou um grito desesperado. Tem que mudar de país de vez em quando. Colocar uma mochila nas costas e virar verbo.

O artista tem que insistir, trocar de caminho. Ser indisciplinadamente disciplinado. Deve andar de trem, conversar com o passageiro do lado, não importa em qual idioma. Ele tem que puxar assunto, usando gestos se for preciso. Precisa arriscar. Apostar naquilo em que acredita. E naquilo em que não acredita também. Deve migrar, pular, tropeçar, ousar, renovar.

O artista tem que fazer de tudo para o coração bater assim meio descompassado. Aquele descompasso de paixão, não de doença cardíaca. Tem que fazer careta quando presenciar uma cena engraçada. Chorar, quando vir alguém dormindo na rua. E se não chorar, então não é artista. Tem que dar esmola não só aos aleijados. Precisa sair. Sair de casa, sair do escritório, sair do carro, sair de dentro de si, sair por aí levando qualquer objeto.

Tem que andar sempre com um caderno, uma caneta, uma câmera fotográfica, um dicionário de sinônimos e um chapéu de palha. Precisa partir, participar, particularizar. O artista tem que sofrer para ser. E sofrer novamente, para ser outra pessoa quando se passarem dez minutos. Ele tem que ser vários. E precisa disso. Precisa acordar como músico, almoçar feito poeta e dormir na pele de um cronista.

O artista tem que investigar as rimas. Investigar a vida. A dele e a dos outros também. Precisa se despedir constantemente do medo. Andar de elevador vinte vezes ao dia, de avião uma vez ao mês, de teleférico duas vezes ao ano.

O artista precisa olhar para janela de quinze em quinze minutos. Todo artista almeja a janela. Almeja o que há lá fora. Almeja a promessa da janela. Sente vontade de abraçar o céu, engolir as nuvens, retocar a lua. Todo artista precisa sair. E, saindo, ele vai entrando em lugares diferentes para ser artista novamente.

O verdadeiro artista nunca tem um endereço fixo dentro dele.

FABULOSA BANDA DO CURINGA

(Publicado no Guia da Semana)

O curinga é uma figura misteriosa. Quem nunca reclamou ao tirar um do monte no jogo de baralho? E quem nunca comemorou ao fazer a mesma coisa? Num curinga, cabem milhões de significados. Tem gente que lembra das férias na fazenda, outros não podem nem ouvir falar dele que já correm para acender as luzes. É o tal medo de curinga.

Curinga para mim também já foi muita coisa. Mas depois daquele show na Granja Viana, passou a ser música. Passou a ser som de violino, de teclado, som de letras que falam de estrelas, de destino, trilha sonora de sonho, figura digna de playlist no IPod. O curinga passou a ser fabuloso. Agora, ele é a Fabulosa Banda do Curinga.

A banda não tem gravadora. E daí? A casa do Vinícius não tinha nem parede e as pessoas cantam até hoje. Ouvir a Fabulosa é assistir à harmonia dando um forte abraço na melodia. É sentir saudade da faixa 7 quando o rádio caminha para a faixa 8. Cada curinga tem seu papel na construção do som. Tijolo por tijolo, os curingas são mágicos. Talvez eles sejam arquitetos que desistiram de criar casas para ir morar num baralho. Ou quem sabe, para impressinar as damas, foram aprenderam música. Aprenderam bem.

A Fabulosa já tem seus fãs. Acompanham a banda nos shows que ela vai cultivando na Granja. No começo, só a família dos músicos. Mas a banda foi passando. E todo mundo agora quer ver a banda passar. Quem quer enteder o destino tem que assistir ao show da Fabulosa.

A banda não está na mídia. Azar da mídia. Sabe da última? Descobriram que existe vida fora dos cadernos dois. Uma vida fabulosa de efeitos sonoros, letras necessárias, significado e significante de mãos dadas em cima do palco. A Fabulosa vai ser do quintal para o mundo. Da Granja para o mundo. A fama ainda não veio. Mas o que é a fama senão um carinho no ego? Vai sem fama mesmo, a Fabulosa, tocando com coisas melhores que isso. Vai tocando com qualidade, colecionando temas curiosos, motivos. Enfim, vai tocando com o curinga.

Se você nunca foi ao show da Fabulosa, dá para entender. Os guias da cidade (com exceção deste Guia: ele está falando da Fabulosa) ainda deixam a banda fora do baralho cultural. Sem problemas. A Fabulosa tem seu próprio baralho. É um baralho mágico onde os ases cantam, as damas dançam, os reis assistem e os curinga regem.

Tem horas que o negócio é descatar o lugar-comum, embaralhar as novidades e puxar cartas inéditas do monte. Vai que você dá sorte e acaba pegando um curinga.

SEM PRESSA

(Publicado no Guia da Semana)

Quem disse que tocar rápido é tocar bem? Para muita gente, palco é autódromo. E músico, piloto de Fórmula 1. Aplausos para o guitarrista dos dedos velozes, gritos para o baterista das ágeis viradas. Já foi a época em que a música agradava pela harmonia. Que saudade da professorinha que me ensinou o beabá! Agora é tudo uma questão de velocidade. Um tiro para cima e lá se vão os músicos numa triste corrida para ver quem chega primeiro à próxima nota.

Aula com o professor de música Fábio Cardia. Um aluno pergunta se virtuosismo faz um músico se destacar. Fábio responde algo que ficaria na minha memória para sempre. "Não se trata de velocidade, mas sim de tocar no momento certo. Posso fazer alguém chorar tocando apenas uma nota do meu violino". A cabeça dos que dormiam se levantou da bancada junto com as mãos. Aplausos para Cardia. Vaias para a frieza musical.

O nosso calendário natural mostra uma data indesejável. É a época da falta de sensibilidade. Vivemos num tempo de ausência de músicos tocando pelo som. Músicos como o Zé Barbeiro, lá do Ó do Borogodó. Enquanto todo mundo tenta se destacar em solos a 120Km/h, Zé Barbeiro permanece quase invisível no palco. Na sua condição de funcionário da música, Zé prefere não aparecer mais do que ela. Quando Dominguinhos surge com a sua sanfona, surge também a delicadeza de alguém tocando pela música e dedos brincando de passear por teclas brancas e pretas sem a preocupação de apostar corrida entre si. Quer ser um dos primeiros colocados? Corra menos.

É natural da parte dos jovens músicos a vontade de tocar rapidamente para impressionar a plateia. Mas a evolução um dia chega: momento em que o sentimento e a coerência harmônica superam a velocidade. Basta ouvir o Paulinho Nogueira tocando Chico Buarque. Nada de virtuosismo, a simplicidade é algo tão real que chega a dar um arrepio na alma.

Um jardineiro usa vários instrumentos para embelezar o jardim. Ele não tem que ser especialista em enxada, por exemplo. Usa desde tesouras a rastelos. Se, no final, o jardim agradar, ponto para o jardineiro. Assim é o músico tocando pelo som. O instrumento serve apenas para passar a mensagem. Vale a música, a sua essência. Claro que às vezes a frase pede velocidade. Mas que seja em função do recado e não o próprio recado.

Raros são os instrumentistas que também merecem o título de musicistas. O que não faltam são jovens preocupados com a velocidade de suas notas. E a mensagem musical? E a delicadeza tão necessária para emocionar os ouvintes? Vamos colocar uma placa em frente à nossa expectativa: precisa-se de músicos que priorizem o som.

Quem toca o tempo inteiro com velocidade não toca a alma de quem escuta.

GUINGA

(Publicado no Guia da Semana)

Eu trocaria o meu universo musical pelo universo dele, disse Paco de Lucia sobre o nosso grande Guinga. Eu também trocaria. Tudo bem que não seria muita vantagem para o compositor carioca, mas permita-me dizer isso só pelo efeito da frase. Lá estava eu na plateia do Sesc Vila Mariana, ansioso pela aparição do dentista-compositor. Dono de uma música capaz de fabricar sorrisos. Guinga no violão, Paulo Sérgio no clarinete e Bolão na bateira. O primeiro trio com cinquenta integrantes da história da lógica. O som preenchia o teatro. E a gente se esforçava para entender como três músicos soam feito uma orquestra. Eles brincavam de música. Crianças no quintal de casa, depois de chegar da escola.

De repente, "Senhorinha". Música de melodia saborosa e letra de Paulo César Pinheiro, o que já é um adjetivo. Lembro-me da minha infância no concreto da cidade, invejo a senhorinha da música, correndo pelos gramados da fazenda imaginária. A plateia flutuava em silêncio. O teatro ia virando cenário de livro do Guimarães Rosa. Meio branco, sem nada muito definido, só linhas pelo chão apontando os caminhos. Na verdade, aquele era o cenário do Guinga. Da música dele. Toda canção que nos constrói uma casa merece morar na eternidade.

O meu primeiro contato com a música do Guinga foi há um bom tempo. Pouco se falava do compositor quando minha tia me deu um CD dele de presente. (Naquela época, a gente ainda comprava CD). Confesso que fiquei meio desconfiado ao ver o encarte com as palavras "Simples e Absurdo". E os dois nomes que assinavam o trabalho: Guinga e Aldir Blanc. Escutei o CD durante quatro meses sem parar. Overdose de Guinga. Ponto final nas drogas que a juventude muitas vezes coloca no rádio.

Voltemos ao show. Guinga conversa com seus companheiros de palco entre uma música e outra. Conta que, Bolão, ao ver Paulo Sérgio enchendo a mala de CD, perguntou: - vai levar os CDs para passear? Música assim merecia vender mais. Por que é tão difícil ligar a TV e dar de cara com o Guinga? Por onde anda o bom gosto dos programadores de mídia? Será que algum deles está na plateia? Talvez aquele senhor quieto na fileira J, que evita bater palmas lutando para não confessar a sua preferência pelo som do compositor carioca.

Fim do show. Eles tocam o bis e voltam para o camarim discreto dos artistas das minorias. Na saída do teatro, o show continuava na minha mente. O som transparente do clarinete do Paulo Sérgio, as melodias mágicas do Guinga e a delicadeza de um baterista conhecido como Bolão. Valeu navegar pelo jornal na tentativa de pescar um programa em uma noite de quinta-feira. Um discreto anúncio apresentava o nome que eu tanto estranhei naquele encarte curioso da minha adolescência. Guinga.

No Fundo do Rio tem Lendas Brasileiras. Nada melhor que Chá de Panela para escutar o Guinga, Nítido e Obscuro. Som de Melodia Branca. Depois que o show começar, por favor, Nem Mais Um Pio. Música cheirosa, Perfume de Radamés. Dos Anjos, dos que sabem fazer. Cheio de Dedos para chorar um violão. Tem Choro pro Zé, pro Sargento Escobar e tem pra você também. Di Maior, Di Menor, com muita história no meio. Dá o Pé, Loro. Mas não canta agora que já tocou a última campainha. Lá, no Noturno Leopoldina, o céu tem Sete Estrelas. Pra Quem Quiser Me Visitar, moro no Simples e Absurdo.

Assim é a música do Guinga. Tem uma língua própria. E fala por si só.

MÚSICA DE METRÔ

(Publicado no Guia da Semana)

Foi no metrô de Nova Iorque. Ele tinha um teclado pendurado no pescoço, de modo que seus dedos alcançavam as teclas na altura da barriga. A idade, talvez uns trinta e seis. Como soava bem aquele homem. Como soava bem aquela música.



Chamou a atenção de todo mundo. Um senhor, que dormia embrulhado em um lençol velho, abriu os olhos. Uma moça, que lia uma dessas revistas de fofocas, perdeu o interesse em saber quem vai casar com quem. Uma criança, que brincava com seu carrinho, passou a brincar de ouvir música. Toda a estação se fez platéia. Lá estava o homem, encantando sem sair dos trilhos da afinação. 



Com muita suavidade, ele oferecia suas notas a quem as quisesse receber. Eu queria. E aquela música ia fazendo cada vez mais sentido para mim. É como se ele antecipasse os acordes e frases que o público gostaria de ouvir. O homem estava sempre dois segundos adiantado na minha expectativa.



Eu que não consigo me livrar do hábito de roer unhas à espera do próximo trem, naquele momento, passei a torcer em silêncio para que nenhuma luz surgisse na boca do túnel. "That I can change the world / I would be the sunlight in your universe"... que som fazia aquele homem enquanto milhares de pés andavam apressados sob sua cabeça. Pés que talvez seguissem em direção ao Carnegie Hall em busca de um ingresso. Mal sabiam eles que o palco era mais embaixo. 



E como tudo que é único dura pouco, um barulho assassinava a melodia daquele artista subterrâneo. Desobedeci à minha vontade. Entrei no trem. Ainda deu para ver uma das mãos dele acariciando um dó sustenido. Mas meus ouvidos já estavam respirando outros ares. Uma voz cansada pedia distância das portas. O trem seguia na minha contramão. 



Ainda guardo na memória a voz daquele homem e sua harmonia improvisada nascendo de um teclado simples, desses que a gente encontra até em loja de brinquedo. Músico bom entra em nossa cabeça sem ser convidado. Vez em quando me pego estalando os dedos diante das notas que visitam minha memória. Notas que ouvi uma vez naquela estação. E continuo ouvindo em silêncio até hoje. 



Não dá para negar a eficiência do metrô de Nova Iorque. Mas bem que
ele podia esperar o final da música para chegar à estação.

TENHO EU QUE SER DOUTOR?

(Publicado no Guia da Semana)

Viver de música no Brasil. Será que isso é possível? Lembro-me da voz rouca do Tom Jobim dizendo andar sempre com uma pasta cheia de arranjos debaixo do braço para competir com o aluguel. Se certa dificuldade financeira regia até o cotidiano do nosso grande maestro soberano, o que será então dos músicos ainda lutando por um lugar no palco? Não é nada fácil tocar a vida para quem toca por aí.

Foi numa estação do metrô de Nova Iorque que um som chamou a minha atenção. Misturado ao barulho do trem, aquela música não me soava estranho. De repente, a ficha caiu dentro do meu ouvido. 1X0, do Pixinguinha. Em seus vinte e sete anos, o violonista esbanjava agilidade. Um homem de terno, gravata, Laptop e iPhone jogou um dólar na caixa do violão. Ganhou um sorriso de troco. Depois foi a vez de uma senhora arremessar algumas moedas como quem cumpre o seu dever. Ficou sem sorriso. E antes de aplaudir, várias mãos engordaram a caixa do músico com notas dos mais variados valores. 1X0 para o violonista. No metrô de Nova Iorque, dá para se viver de música.

Falando em moeda, vamos agora olhar para o outro lado dela. Tocar no metrô, debaixo da linha do Equador é meio complicado. Primeiro, porque não tem muito metrô. Segundo, porque alguém pode pedir o seu violão em vez de pedir uma música. Os barzinhos também são uma opção para se viver de som. Mas o couvert artístico não dá nem para pagar o couvert do restaurante. Um dos melhores violonistas 7 cordas do país me disse que só não ficou sem teto porque um amigo lhe emprestou sua casa. Tem algo errado quando um jovem músico coleciona dólares no metrô de Nova Iorque enquanto a sua referência musical mora de favor em São Paulo.

Experimente anunciar na mesa do almoço a sua escolha pela faculdade de Música. O resultado são cinco pessoas engasgadas e duas gritando na sua orelha o seguinte mantra: música não dá dinheiro, meu filho. Talvez o pai do Paulinho da Viola tenha razão. Nessa terra de doutor, ser músico é pedir para ter dor de cabeça. Nem tango argentino é tão triste quanto a situação financeira dos músicos nesse país.

Falo isso porque tenho alguns músicos na família. Tio maestro, tia cantora. O primeiro virou empresário, montou uma escola em Bauru. A outra trabalha como corretora de imóveis. Vejam só, são dois músicos a menos no palco. A cortina continua fechada para eles.

Já me disseram que para ganhar dinheiro com música por aqui, tem que tocar ou com o Caetano ou com o Gil. Eles pagam bem. Claro que eles pagam bem, ambos têm cérebros para reconhecer a importância dos músicos e, acima de tudo, da música em nosso país. Exemplos a serem seguidos para que mais gente siga a carreira musical.

A tecnologia faz muita coisa hoje. Ela só não cria. Porque isso vem lá de dentro, de uma peça chamada talento, apertada pelo parafuso da inspiração. Em tempos de máquinas trabalhando pelo homem, talvez prevaleça a criação. A tendência é a valorização da arte. Porque a Apple nunca vai lançar o IPod compositor.

Tenho eu que ser doutor? Vamos torcer para que em pouco tempo a resposta seja não.

UM SONHO CHAMADO JOBIM

(Publicado no Guia da Semana)

O show a que nunca fui aconteceu em alguma esquina da minha memória, naquela região das coisas que não existiram. A mente faz força para dar vida ao fato. E a gente acaba se lembrando da plateia ansiosa, do som das latinhas de refrigerantes, do garçom com a lanterna discreta trazendo uma porção de pastel.

Mas não havia tempo para uma segunda mordida. Das cortinas laterais do teatro imaginário, surge um senhor de terno branco e chapéu de palha. Pai das teclas pretas e brancas. Com vocês, Antônio Carlos Jobim.

Em um gesto eterno, ele assume o piano. O primeiro acorde soa forte, deixando até quem não pediu aperitivo de boca aberta. "Eu sei que vou te amar, por toda minha vida eu vou te amar". A moça da mesa ao lado chora. Um garçom oferece lenço, mas ela se irrita em um balé de mãos tentando abrir caminho para os olhos. As lágrimas param de cair. Chega de saudade.

A plateia aplaude de pé. Algumas palmas perdidas coincidem com a introdução da próxima música. Tom segue declamando ao piano. Tristeza tem fim. Ela acaba ali, na harmonia tão carioca do maestro brasileiro.

Agora me pego, imaginando o mar, o Corcovado e a curva do avião em busca da pista. Por um instante, uma certeza: o Rio de Janeiro estava ali, dentro do meu teatro.

O maestro continua acariciando seu piano. Faz chover na roseira, faz imortal uma garota na praia, faz os desafinados da platéia cantarem com o coração. Até que o show termina nos gritos insistentes de "bis". Jobim atende aos pedidos. Imortaliza novamente a famosa garota. E desaparece atrás das cortinas do palco da minha memória. As luzes se acendem, agora posso ver o rosto dos garçons. A moça que estava ao meu lado é um pouco mais gorda do que imaginei. No escuro, tudo melhora.

É o fim do meu encontro com o mestre das melodias cheias de Mata Atlântica. O fim de um salto preciso do plano da realidade ao plano dos sonhos. Fim do show a que nunca fui. Como é teimosa a nossa imaginação.