segunda-feira, 13 de setembro de 2010

COM INSPIRAÇÃO

(Publicado no Guia da Semana)

A música nasce da inspiração. A letra pode entrar na mente do artista a qualquer momento sem ser convidada. E a melodia também. Ulisses Rocha, grande violonista e compositor do nosso país, já viu muitas de suas peças nascerem na estrada, enquanto ia de São Paulo a Campinas. Ele imaginava as notas e, no final da viagem, passava para o papel tudo o que surgiu no asfalto.

Mas o que dizer sobre os dias de hoje? Os músicos continuam compondo por pura inspiração? Ou, no melhor estilo Idade Média, por encomenda?

Ligue o rádio. Você vai descobrir algo triste: 1% de inspiração e 99% de encomenda. As letras mecânicas e as rimas previsíveis não surpreendem nossos ouvidos. Elas são como o trânsito das seis da tarde: sem novidade, desgastantes. Quando alguém escreve uma música, pensando apenas em fazer sucesso, deixa de lado todo o sentimento disponível que mora em algum lugar por aí. E som órfão de inspiração frustra a plateia.

Peguemos Tom Jobim emprestado lá do céu como exemplo. Escolha aleatoriamente um dos CDs dele ou aperte o play do mp3 em alguma das canções do maestro soberano. Já nos primeiros acordes, você dá um sorriso. Porque Jobim nunca compôs só para fazer sucesso. Ele se sentava debaixo de uma árvore no Jardim Botânico e despejava emoções na partitura. A voz do maestro vivia trazendo recados do mundo da inspiração.

Quer ser famoso fazendo música? Comece pesquisando as fontes da sua inspiração. Quem é a pessoa que faz você ter vontade de pegar um instrumento, um papel, uma caneta e sair arriscando versos e notas? Invista em encontros com ela. Quais são os lugares capazes de arrancar um fundo suspiro da sua alma, seguido de um "adoro esse lugar"? Qual a hora do dia em que a rotina vai dormir e a sua mente convida o coração para pensar no lugar dela?

Música com inspiração nem sempre assume o primeiro lugar nas listas das mais tocadas. É o caso do som de George Vidal e de João Miguel Valencise. Entre no Myspace desses artistas e tome um banho de canções capazes de emocionar até o alemão mais frio de Berlim.

A música deve nascer lá de dentro do artista, chegar ao mundo com uma história para se contar. Senão, ela toca nas rádios, toca nas lojas de shoppings, toca nos elevadores, toca nos palcos, e não toca ninguém.

CENAS MUSICAIS

(Publicado no Guia da Semana)

Uma música tem mais que mil imagens. Desde Que o Samba é Samba vem visitar os meus ouvidos. A janela me traz pessoas andando tranquilamente para atravessar a rua. Um homem está sentado no meio da cidade, lendo o jornal. Mas o dia troca de faixa para Sorriso do Gordo, instrumental de Teco Cardoso e Lea Freire. Agora, os passos são ansiosos. A fila do shopping aumentou junto com a pressa. Os carros cantam pneus. Corre que não vai dar tempo de bater o cartão. Olha lá uma mulher atravessando no vermelho. O baterista dita o ritmo da cidade.

Woody Allen é uma prova da bela relação entre som e imagem. O cineasta assina a trilha de vários filmes, vai gravando com uma câmera na mão e um clarinete imaginário na cabeça. Temos uma Nova Iorque charmosa quando, ao fundo, um jazz faz cama para as falas neuróticas das personagens. Para cada banco nos parques do Brooklyn, há um maestro regendo a paisagem. No universo de Woody Allen, dá para se tocar Nova Iorque no rádio.

Não é fácil escolher a trilha de um filme. Passei por tal experiência recentemente. Uma árvore com Tom Jobim é muito mais verde que com Cazuza. Ao lado de um senhor sentado no sofá ao som do Cartola, está uma tristeza tranquila, lendo revista de fofoca. O mesmo senhor ao som de Chico Buarque é outra história. No sofá, ele se recupera da briga com a esposa, mulher descompensada. Acabou de se mandar para rua, levando um Neruda debaixo do braço.

O sol é uma nota aguda, chega a doer nos ouvidos. O mar é harmonia cadenciada, notas fáceis de se apreciarem. Aliás, o mar está cheio de pausas. A mulher que desceu do carro para brigar no cruzamento da Av. Brasil com a Rebouças vai soando ópera pela cidade. E o padeiro com a caneta atrás da orelha, sorrindo em dia de chuva, 1 X 0 do Pixinguinha. Toda personalidade é compositora de sua própria música.

Lembro-me do grande maestro Vitche, responsável por muitas trilhas de filmes. Num estúdio em Pinheiros, ele me mostrou uma folha cheia de linhas. Uma espécie de pauta musical. Naquelas páginas amareladas, o maestro ia escrevendo as notas ditadas pela imagem no monitor. O gol do Pelé estava em mi menor, mas o pulo já mudaria de tom: sol maior.

A música não apenas muda uma imagem. Ela também carrega em si mesma milhões de frames. É a imagem do som. Ou você não vê uma moça loira de biquíni fininho andando na praia toda vez que escuta Garota de Ipanema? Não há nada mais agradável que brincar de enxergar o som.

Dá próxima vez que apertar o play do rádio, repare nas imagens. Com quem você se encontra durante os polêmicos acordes do Egberto Gismonti? Qual a cor da música do Frank Sinatra? Quantas pessoas moram na cidade onde a banda do Chico passou?

Música é mágica. A gente ouve enxergando de olhos fechados.

SALA BRASIL

(Publicado no Guia da Semana)

O assunto poderia ser o show de algum pop star e a introdução do texto seria uma tentativa de medir em palavras o tamanho da fila no Credicard Hall. Ou, quem sabe, o assunto trouxesse a notícia do lançamento do clipe daquela banda lota-estágios.

Dessa vez, as palavras foram visitar um tema diferente. Na verdade, uma sala: a Sala Brasil.

Não se trata de um programa de TV ou título de canção patriota. A Sala Brasil é um cantinho de música na esquina do interior de São Paulo. Ela mora dentro de uma escola de música. Lá, as paredes agradecem "por terem nascido com ouvido".

Vira e mexe, tem show na Sala Brasil. De passagem pela cidade, fui convidado a assistir a um deles. Cheguei como quem prepara as expectativas para algo menor, evitando o nascimento da frustração. Aprendi a lição: não confundam baixo número de habitantes com falta de qualidade musical. O show foi daqueles de morar para sempre na memória. Quem assina os arranjos é o maestro e dono da escola George Vidal. Com o passar dos acordes, fui descobrindo a existência da música fora do eixo Rio-São Paulo.

A Sala Brasil é a música pegando a estrada, mostrando que o país esconde tesouros por aí. O esquema é bem simples: você paga uns cinco ou dez reais para entrar e ainda pode comprar churrasco e bebida sem ter que ir até a padaria. Antes do show, a plateia (no interior todo mundo se conhece) aproveita para colocar o papo em dia, confirmar as fofocas, exercitar a fala. Mas quando a mão do maestro beija as teclas do piano, nada mais se ouve. Bauru é o silêncio. E as notas abraçam a cidade, espalhando poesia longe da Globo, bem distante das páginas dos jornais.

Na Sala Brasil, o dentista troca o motorzinho pelas baquetas. O advogado argumenta soprando um saxofone. Médico cura paciente usando apenas uma guitarra. Qualquer um pode produzir som, na Sala Brasil. Os arranjos do maestro levam o nível musical lá para cima. E os alunos, no palco, declamam o que aprenderam.

Assim foi o dia em que visitei a Sala Brasil. Saí de lá com um texto pronto na cabeça, as palavras gritando dentro da mente como se pedissem justiça. A Sala Brasil também merece um cantinho na mídia. Se tanto faz para as pautas dos jornais, para mim ela fez diferença. Salve a Sala Brasil. Salve George Vidal, o maestro. Salve a nossa música que mora lá no interior.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

ALÉM DO VIOLÃO

(Publicado no Guia da Semana)

Carioca na Certidão de Nascimento, paulista na conta de luz e de telefone. Ulisses Rocha é um dos grandes nomes da nossa música. Os acordes do seu violão vêm compondo a história instrumental brasileira. Ulisses coordena cursos nas escolas mais respeitadas do país. E grandes violonistas já passaram pelas suas mãos: Alessandro Penezzi, Euclides Marques, Chico Saraiva, Marcos Davi e por aí vai.

Entre no MySpace de Ulisses. Você vai ver que há shows agendados em vários países da Europa. O pessoal do hemisfério norte parece ter uma cultura musical superior à nossa. Exportamos a laranja, os gringos fazem suco e vendem de volta. No café da manhã, a mesa do brasileiro exibe embalagens importadas. Com a música é a mesma coisa. Dia desses, entrei na seção de jazz de uma loja de CDs (ainda existe gente que compra isso?). O Villa Lobos saía a preço de caviar. A explicação do atendente foi automática: "Ah, esse CD é importado. Vem do estrangeiro". O Villa virou Vylla.

Ulisses Rocha ainda é novo. Temos que consumir suas músicas, conferir seus malabares nas cordas do violão e comprar seus CDs antes que eles ganhem um selo de uma gravadora da Noruega. É preciso registrar informalmente a nacionalidade de Ulisses. Se ele ficar dando sopa, qualquer suíço vem e leva embora.

Difícil saber onde termina Ulisses e começa seu violão. As duas coisas se misturam em um emaranhado sonoro. A música Fim de Tarde nos convida para assistir ao pôr do sol na pedra de alguma praia. A melodia de Imigrante anda de um país a outro. Rua Harmonia leva nossos ouvidos para passear na Vila Madalena, em São Paulo. Infância faz o relógio andar de ré. Manhã é som com gosto de pão de queijo, café e leite. O violão de Ulisses é um dicionário de emoções.

Várias influências musicais dão cor ao som de Ulisses Rocha: rock, bossa nova, samba, pop e jazz. Aliás, ele criou um jazz brasileiro. Pegou o som do Pat Metheny e do Baden Powell, jogou dentro de um liquidificador e adicionou alguns ingredientes próprios. Nasceu assim a música dissonantemente precisa deste mestre das cordas.

Vamos afinar nossa cultura musical ouvindo Ulisses Rocha. O mundo inteiro lota as casas de shows para apreciar o balé de dedos desse grande - e nosso - violonista. Se você tem um amigo estrangeiro, apresente o som de Ulisses para ele. Antes que o contrário aconteça.