sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

MÚSICA DA ALMA

(Publicado no Guia da Semana)

Numa tarde normal, levaram Villa Lobos para conhecer um sambista na favela da mangueira. O maestro subiu o morro junto com suas expectativas, até alcançar um barracão. Um magro rapaz de óculos escuros fez sinal para entrarem na casa. Alguém pediu em voz alta: - Cartola, toca um sambinha seu aí para o maestro ouvir. Ele atendeu ao pedido. No final do samba, Villa Lobos deixaria um verso para a história. "Tá tudo errado, mas tá maravilhoso".

Até que ponto vários anos de estudo dão em samba? Nunca vi nenhuma emoção pedir o currículo do artista antes de agir sobre organismos e almas.

Dizem por aí que Vinicius de Morais sugeriu ao seu pupilo Toquinho não estudar muito, para manter a lógica intuitiva tão agradável de suas melodias. O poetinha queria preservar a ingenuidade do som. Queria notas sem diploma, acordes que nunca frequentaram a sala de aula.

A alma não está nem aí para o que é certo ou errado. Ela quer é sentir. Cartola fez Villa Lobos sentir. Os dedos no violão indicavam a falta de técnica. Mas o maestro foi traído pelo descuido de seus ouvidos. E num movimento natural, a música "torta" daquele rapaz da mangueira fazia mais sentido que qualquer sinfonia executada pela Filarmônica de Berlim.

Tudo bem que saber as regras de uma linguagem ajuda a desconstruí-la. O poeta Manoel de Barros só desafia a gramática, hoje, porque, ontem, devorou livros sobre a estrutura da língua. Talvez, entender a música e suas peculiaridades seja mais uma ferramenta para ajudar a intuição na busca pelo que emociona. Mas está longe de ser a única coisa de que um artista precisa.

Ninguém aqui é contra jovem fazer faculdade de música. Tendo coragem para comunicar à família, vá em frente. Conhecimento é sempre bem-vindo. Só que as lições sobre inventar sequências de notas que viram uma bicicleta descendo a montanha na cabeça da moça da primeira fileira não estão nos livros.

Quando um compositor desarmado de fórmulas musicais apanha um violão no canto do quarto, ele não enxerga cinco cordas. Enxerga som. E a intuição dele começa a brincar com as notas. Sentir o que combina. Ouvir o que agrada. Assim vai nascendo uma música saudável, descontaminada. Depois, ele pode até recorrer aos livros para lapidar a obra. Mas a essência nasceu lá de dentro, de um lugar sem regras, sem leis, onde dois mais dois são cinco e seis ao mesmo tempo.

Na hora de fazer música, vale acionar a intuição. Conversar com a inspiração. Música tem que emocionar. A melhor professora para dizer se uma partitura está certa ou errada é a nossa alma.

Noel tem toda razão. "Sambar é um privilégio, ninguém aprende samba no colégio".

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O ARTISTA

(Publicado no Guia da Semana)

O artista precisa fugir. Ir lá naquela ponta bem distante que ninguém sabe qual é, porque não dá para ver. Ele tem que correr. E olhar para trás quando ouvir um assobio. Ou um grito desesperado. Tem que mudar de país de vez em quando. Colocar uma mochila nas costas e virar verbo.

O artista tem que insistir, trocar de caminho. Ser indisciplinadamente disciplinado. Deve andar de trem, conversar com o passageiro do lado, não importa em qual idioma. Ele tem que puxar assunto, usando gestos se for preciso. Precisa arriscar. Apostar naquilo em que acredita. E naquilo em que não acredita também. Deve migrar, pular, tropeçar, ousar, renovar.

O artista tem que fazer de tudo para o coração bater assim meio descompassado. Aquele descompasso de paixão, não de doença cardíaca. Tem que fazer careta quando presenciar uma cena engraçada. Chorar, quando vir alguém dormindo na rua. E se não chorar, então não é artista. Tem que dar esmola não só aos aleijados. Precisa sair. Sair de casa, sair do escritório, sair do carro, sair de dentro de si, sair por aí levando qualquer objeto.

Tem que andar sempre com um caderno, uma caneta, uma câmera fotográfica, um dicionário de sinônimos e um chapéu de palha. Precisa partir, participar, particularizar. O artista tem que sofrer para ser. E sofrer novamente, para ser outra pessoa quando se passarem dez minutos. Ele tem que ser vários. E precisa disso. Precisa acordar como músico, almoçar feito poeta e dormir na pele de um cronista.

O artista tem que investigar as rimas. Investigar a vida. A dele e a dos outros também. Precisa se despedir constantemente do medo. Andar de elevador vinte vezes ao dia, de avião uma vez ao mês, de teleférico duas vezes ao ano.

O artista precisa olhar para janela de quinze em quinze minutos. Todo artista almeja a janela. Almeja o que há lá fora. Almeja a promessa da janela. Sente vontade de abraçar o céu, engolir as nuvens, retocar a lua. Todo artista precisa sair. E, saindo, ele vai entrando em lugares diferentes para ser artista novamente.

O verdadeiro artista nunca tem um endereço fixo dentro dele.

FABULOSA BANDA DO CURINGA

(Publicado no Guia da Semana)

O curinga é uma figura misteriosa. Quem nunca reclamou ao tirar um do monte no jogo de baralho? E quem nunca comemorou ao fazer a mesma coisa? Num curinga, cabem milhões de significados. Tem gente que lembra das férias na fazenda, outros não podem nem ouvir falar dele que já correm para acender as luzes. É o tal medo de curinga.

Curinga para mim também já foi muita coisa. Mas depois daquele show na Granja Viana, passou a ser música. Passou a ser som de violino, de teclado, som de letras que falam de estrelas, de destino, trilha sonora de sonho, figura digna de playlist no IPod. O curinga passou a ser fabuloso. Agora, ele é a Fabulosa Banda do Curinga.

A banda não tem gravadora. E daí? A casa do Vinícius não tinha nem parede e as pessoas cantam até hoje. Ouvir a Fabulosa é assistir à harmonia dando um forte abraço na melodia. É sentir saudade da faixa 7 quando o rádio caminha para a faixa 8. Cada curinga tem seu papel na construção do som. Tijolo por tijolo, os curingas são mágicos. Talvez eles sejam arquitetos que desistiram de criar casas para ir morar num baralho. Ou quem sabe, para impressinar as damas, foram aprenderam música. Aprenderam bem.

A Fabulosa já tem seus fãs. Acompanham a banda nos shows que ela vai cultivando na Granja. No começo, só a família dos músicos. Mas a banda foi passando. E todo mundo agora quer ver a banda passar. Quem quer enteder o destino tem que assistir ao show da Fabulosa.

A banda não está na mídia. Azar da mídia. Sabe da última? Descobriram que existe vida fora dos cadernos dois. Uma vida fabulosa de efeitos sonoros, letras necessárias, significado e significante de mãos dadas em cima do palco. A Fabulosa vai ser do quintal para o mundo. Da Granja para o mundo. A fama ainda não veio. Mas o que é a fama senão um carinho no ego? Vai sem fama mesmo, a Fabulosa, tocando com coisas melhores que isso. Vai tocando com qualidade, colecionando temas curiosos, motivos. Enfim, vai tocando com o curinga.

Se você nunca foi ao show da Fabulosa, dá para entender. Os guias da cidade (com exceção deste Guia: ele está falando da Fabulosa) ainda deixam a banda fora do baralho cultural. Sem problemas. A Fabulosa tem seu próprio baralho. É um baralho mágico onde os ases cantam, as damas dançam, os reis assistem e os curinga regem.

Tem horas que o negócio é descatar o lugar-comum, embaralhar as novidades e puxar cartas inéditas do monte. Vai que você dá sorte e acaba pegando um curinga.

SEM PRESSA

(Publicado no Guia da Semana)

Quem disse que tocar rápido é tocar bem? Para muita gente, palco é autódromo. E músico, piloto de Fórmula 1. Aplausos para o guitarrista dos dedos velozes, gritos para o baterista das ágeis viradas. Já foi a época em que a música agradava pela harmonia. Que saudade da professorinha que me ensinou o beabá! Agora é tudo uma questão de velocidade. Um tiro para cima e lá se vão os músicos numa triste corrida para ver quem chega primeiro à próxima nota.

Aula com o professor de música Fábio Cardia. Um aluno pergunta se virtuosismo faz um músico se destacar. Fábio responde algo que ficaria na minha memória para sempre. "Não se trata de velocidade, mas sim de tocar no momento certo. Posso fazer alguém chorar tocando apenas uma nota do meu violino". A cabeça dos que dormiam se levantou da bancada junto com as mãos. Aplausos para Cardia. Vaias para a frieza musical.

O nosso calendário natural mostra uma data indesejável. É a época da falta de sensibilidade. Vivemos num tempo de ausência de músicos tocando pelo som. Músicos como o Zé Barbeiro, lá do Ó do Borogodó. Enquanto todo mundo tenta se destacar em solos a 120Km/h, Zé Barbeiro permanece quase invisível no palco. Na sua condição de funcionário da música, Zé prefere não aparecer mais do que ela. Quando Dominguinhos surge com a sua sanfona, surge também a delicadeza de alguém tocando pela música e dedos brincando de passear por teclas brancas e pretas sem a preocupação de apostar corrida entre si. Quer ser um dos primeiros colocados? Corra menos.

É natural da parte dos jovens músicos a vontade de tocar rapidamente para impressionar a plateia. Mas a evolução um dia chega: momento em que o sentimento e a coerência harmônica superam a velocidade. Basta ouvir o Paulinho Nogueira tocando Chico Buarque. Nada de virtuosismo, a simplicidade é algo tão real que chega a dar um arrepio na alma.

Um jardineiro usa vários instrumentos para embelezar o jardim. Ele não tem que ser especialista em enxada, por exemplo. Usa desde tesouras a rastelos. Se, no final, o jardim agradar, ponto para o jardineiro. Assim é o músico tocando pelo som. O instrumento serve apenas para passar a mensagem. Vale a música, a sua essência. Claro que às vezes a frase pede velocidade. Mas que seja em função do recado e não o próprio recado.

Raros são os instrumentistas que também merecem o título de musicistas. O que não faltam são jovens preocupados com a velocidade de suas notas. E a mensagem musical? E a delicadeza tão necessária para emocionar os ouvintes? Vamos colocar uma placa em frente à nossa expectativa: precisa-se de músicos que priorizem o som.

Quem toca o tempo inteiro com velocidade não toca a alma de quem escuta.

GUINGA

(Publicado no Guia da Semana)

Eu trocaria o meu universo musical pelo universo dele, disse Paco de Lucia sobre o nosso grande Guinga. Eu também trocaria. Tudo bem que não seria muita vantagem para o compositor carioca, mas permita-me dizer isso só pelo efeito da frase. Lá estava eu na plateia do Sesc Vila Mariana, ansioso pela aparição do dentista-compositor. Dono de uma música capaz de fabricar sorrisos. Guinga no violão, Paulo Sérgio no clarinete e Bolão na bateira. O primeiro trio com cinquenta integrantes da história da lógica. O som preenchia o teatro. E a gente se esforçava para entender como três músicos soam feito uma orquestra. Eles brincavam de música. Crianças no quintal de casa, depois de chegar da escola.

De repente, "Senhorinha". Música de melodia saborosa e letra de Paulo César Pinheiro, o que já é um adjetivo. Lembro-me da minha infância no concreto da cidade, invejo a senhorinha da música, correndo pelos gramados da fazenda imaginária. A plateia flutuava em silêncio. O teatro ia virando cenário de livro do Guimarães Rosa. Meio branco, sem nada muito definido, só linhas pelo chão apontando os caminhos. Na verdade, aquele era o cenário do Guinga. Da música dele. Toda canção que nos constrói uma casa merece morar na eternidade.

O meu primeiro contato com a música do Guinga foi há um bom tempo. Pouco se falava do compositor quando minha tia me deu um CD dele de presente. (Naquela época, a gente ainda comprava CD). Confesso que fiquei meio desconfiado ao ver o encarte com as palavras "Simples e Absurdo". E os dois nomes que assinavam o trabalho: Guinga e Aldir Blanc. Escutei o CD durante quatro meses sem parar. Overdose de Guinga. Ponto final nas drogas que a juventude muitas vezes coloca no rádio.

Voltemos ao show. Guinga conversa com seus companheiros de palco entre uma música e outra. Conta que, Bolão, ao ver Paulo Sérgio enchendo a mala de CD, perguntou: - vai levar os CDs para passear? Música assim merecia vender mais. Por que é tão difícil ligar a TV e dar de cara com o Guinga? Por onde anda o bom gosto dos programadores de mídia? Será que algum deles está na plateia? Talvez aquele senhor quieto na fileira J, que evita bater palmas lutando para não confessar a sua preferência pelo som do compositor carioca.

Fim do show. Eles tocam o bis e voltam para o camarim discreto dos artistas das minorias. Na saída do teatro, o show continuava na minha mente. O som transparente do clarinete do Paulo Sérgio, as melodias mágicas do Guinga e a delicadeza de um baterista conhecido como Bolão. Valeu navegar pelo jornal na tentativa de pescar um programa em uma noite de quinta-feira. Um discreto anúncio apresentava o nome que eu tanto estranhei naquele encarte curioso da minha adolescência. Guinga.

No Fundo do Rio tem Lendas Brasileiras. Nada melhor que Chá de Panela para escutar o Guinga, Nítido e Obscuro. Som de Melodia Branca. Depois que o show começar, por favor, Nem Mais Um Pio. Música cheirosa, Perfume de Radamés. Dos Anjos, dos que sabem fazer. Cheio de Dedos para chorar um violão. Tem Choro pro Zé, pro Sargento Escobar e tem pra você também. Di Maior, Di Menor, com muita história no meio. Dá o Pé, Loro. Mas não canta agora que já tocou a última campainha. Lá, no Noturno Leopoldina, o céu tem Sete Estrelas. Pra Quem Quiser Me Visitar, moro no Simples e Absurdo.

Assim é a música do Guinga. Tem uma língua própria. E fala por si só.

MÚSICA DE METRÔ

(Publicado no Guia da Semana)

Foi no metrô de Nova Iorque. Ele tinha um teclado pendurado no pescoço, de modo que seus dedos alcançavam as teclas na altura da barriga. A idade, talvez uns trinta e seis. Como soava bem aquele homem. Como soava bem aquela música.



Chamou a atenção de todo mundo. Um senhor, que dormia embrulhado em um lençol velho, abriu os olhos. Uma moça, que lia uma dessas revistas de fofocas, perdeu o interesse em saber quem vai casar com quem. Uma criança, que brincava com seu carrinho, passou a brincar de ouvir música. Toda a estação se fez platéia. Lá estava o homem, encantando sem sair dos trilhos da afinação. 



Com muita suavidade, ele oferecia suas notas a quem as quisesse receber. Eu queria. E aquela música ia fazendo cada vez mais sentido para mim. É como se ele antecipasse os acordes e frases que o público gostaria de ouvir. O homem estava sempre dois segundos adiantado na minha expectativa.



Eu que não consigo me livrar do hábito de roer unhas à espera do próximo trem, naquele momento, passei a torcer em silêncio para que nenhuma luz surgisse na boca do túnel. "That I can change the world / I would be the sunlight in your universe"... que som fazia aquele homem enquanto milhares de pés andavam apressados sob sua cabeça. Pés que talvez seguissem em direção ao Carnegie Hall em busca de um ingresso. Mal sabiam eles que o palco era mais embaixo. 



E como tudo que é único dura pouco, um barulho assassinava a melodia daquele artista subterrâneo. Desobedeci à minha vontade. Entrei no trem. Ainda deu para ver uma das mãos dele acariciando um dó sustenido. Mas meus ouvidos já estavam respirando outros ares. Uma voz cansada pedia distância das portas. O trem seguia na minha contramão. 



Ainda guardo na memória a voz daquele homem e sua harmonia improvisada nascendo de um teclado simples, desses que a gente encontra até em loja de brinquedo. Músico bom entra em nossa cabeça sem ser convidado. Vez em quando me pego estalando os dedos diante das notas que visitam minha memória. Notas que ouvi uma vez naquela estação. E continuo ouvindo em silêncio até hoje. 



Não dá para negar a eficiência do metrô de Nova Iorque. Mas bem que
ele podia esperar o final da música para chegar à estação.

TENHO EU QUE SER DOUTOR?

(Publicado no Guia da Semana)

Viver de música no Brasil. Será que isso é possível? Lembro-me da voz rouca do Tom Jobim dizendo andar sempre com uma pasta cheia de arranjos debaixo do braço para competir com o aluguel. Se certa dificuldade financeira regia até o cotidiano do nosso grande maestro soberano, o que será então dos músicos ainda lutando por um lugar no palco? Não é nada fácil tocar a vida para quem toca por aí.

Foi numa estação do metrô de Nova Iorque que um som chamou a minha atenção. Misturado ao barulho do trem, aquela música não me soava estranho. De repente, a ficha caiu dentro do meu ouvido. 1X0, do Pixinguinha. Em seus vinte e sete anos, o violonista esbanjava agilidade. Um homem de terno, gravata, Laptop e iPhone jogou um dólar na caixa do violão. Ganhou um sorriso de troco. Depois foi a vez de uma senhora arremessar algumas moedas como quem cumpre o seu dever. Ficou sem sorriso. E antes de aplaudir, várias mãos engordaram a caixa do músico com notas dos mais variados valores. 1X0 para o violonista. No metrô de Nova Iorque, dá para se viver de música.

Falando em moeda, vamos agora olhar para o outro lado dela. Tocar no metrô, debaixo da linha do Equador é meio complicado. Primeiro, porque não tem muito metrô. Segundo, porque alguém pode pedir o seu violão em vez de pedir uma música. Os barzinhos também são uma opção para se viver de som. Mas o couvert artístico não dá nem para pagar o couvert do restaurante. Um dos melhores violonistas 7 cordas do país me disse que só não ficou sem teto porque um amigo lhe emprestou sua casa. Tem algo errado quando um jovem músico coleciona dólares no metrô de Nova Iorque enquanto a sua referência musical mora de favor em São Paulo.

Experimente anunciar na mesa do almoço a sua escolha pela faculdade de Música. O resultado são cinco pessoas engasgadas e duas gritando na sua orelha o seguinte mantra: música não dá dinheiro, meu filho. Talvez o pai do Paulinho da Viola tenha razão. Nessa terra de doutor, ser músico é pedir para ter dor de cabeça. Nem tango argentino é tão triste quanto a situação financeira dos músicos nesse país.

Falo isso porque tenho alguns músicos na família. Tio maestro, tia cantora. O primeiro virou empresário, montou uma escola em Bauru. A outra trabalha como corretora de imóveis. Vejam só, são dois músicos a menos no palco. A cortina continua fechada para eles.

Já me disseram que para ganhar dinheiro com música por aqui, tem que tocar ou com o Caetano ou com o Gil. Eles pagam bem. Claro que eles pagam bem, ambos têm cérebros para reconhecer a importância dos músicos e, acima de tudo, da música em nosso país. Exemplos a serem seguidos para que mais gente siga a carreira musical.

A tecnologia faz muita coisa hoje. Ela só não cria. Porque isso vem lá de dentro, de uma peça chamada talento, apertada pelo parafuso da inspiração. Em tempos de máquinas trabalhando pelo homem, talvez prevaleça a criação. A tendência é a valorização da arte. Porque a Apple nunca vai lançar o IPod compositor.

Tenho eu que ser doutor? Vamos torcer para que em pouco tempo a resposta seja não.

UM SONHO CHAMADO JOBIM

(Publicado no Guia da Semana)

O show a que nunca fui aconteceu em alguma esquina da minha memória, naquela região das coisas que não existiram. A mente faz força para dar vida ao fato. E a gente acaba se lembrando da plateia ansiosa, do som das latinhas de refrigerantes, do garçom com a lanterna discreta trazendo uma porção de pastel.

Mas não havia tempo para uma segunda mordida. Das cortinas laterais do teatro imaginário, surge um senhor de terno branco e chapéu de palha. Pai das teclas pretas e brancas. Com vocês, Antônio Carlos Jobim.

Em um gesto eterno, ele assume o piano. O primeiro acorde soa forte, deixando até quem não pediu aperitivo de boca aberta. "Eu sei que vou te amar, por toda minha vida eu vou te amar". A moça da mesa ao lado chora. Um garçom oferece lenço, mas ela se irrita em um balé de mãos tentando abrir caminho para os olhos. As lágrimas param de cair. Chega de saudade.

A plateia aplaude de pé. Algumas palmas perdidas coincidem com a introdução da próxima música. Tom segue declamando ao piano. Tristeza tem fim. Ela acaba ali, na harmonia tão carioca do maestro brasileiro.

Agora me pego, imaginando o mar, o Corcovado e a curva do avião em busca da pista. Por um instante, uma certeza: o Rio de Janeiro estava ali, dentro do meu teatro.

O maestro continua acariciando seu piano. Faz chover na roseira, faz imortal uma garota na praia, faz os desafinados da platéia cantarem com o coração. Até que o show termina nos gritos insistentes de "bis". Jobim atende aos pedidos. Imortaliza novamente a famosa garota. E desaparece atrás das cortinas do palco da minha memória. As luzes se acendem, agora posso ver o rosto dos garçons. A moça que estava ao meu lado é um pouco mais gorda do que imaginei. No escuro, tudo melhora.

É o fim do meu encontro com o mestre das melodias cheias de Mata Atlântica. O fim de um salto preciso do plano da realidade ao plano dos sonhos. Fim do show a que nunca fui. Como é teimosa a nossa imaginação.